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IFRS no direito brasileiro

O berço dos IFRS é Londres, no contexto do "common law" como sistema jurídico.

Nos contos de fadas, é comum que os romances sejam construídos com base em choques de culturas. O conflito da trama, então, é a diferença cultural, que pode ser social, financeira, étnica ou de outra natureza.

Veja-se, por exemplo, o caso da “Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen. Nesse belo conto, uma criatura marinha mitológica se apaixona por um ser humano e, com isso, o conflito é instaurado.

Pensar sobre a adoção do padrão internacional de contabilidade, conhecido como "International Financial Reporting Standards" (IFRS), em um país como o Brasil, faz lembrar esses contos de fadas, dado o conflito cultural existente.

O berço dos IFRS é Londres, no contexto do "common law" como sistema jurídico. Tal estrutura jurídica se caracteriza pelo respeito essencial a princípios, aos costumes e à jurisprudência, isto é, as decisões reiteradas das cortes britânicas. A lei escrita não esgota, absolutamente, a regulamentação de determinado assunto.

Por outro lado, o Brasil está inserido no contexto do "civil law", do direito codificado, de origem românica, onde a lei escrita (positiva) desempenha um papel demasiadamente forte na regulação da vida social. Deste lado de baixo do Equador, vigora a legalidade: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5°, II da Constituição Federal).

Lanço mão de um exemplo para tentar aclarar o conflito cultural: na prática jurídica brasileira, se determinado dispositivo é retirado do texto legal, naturalmente, vamos entender que esse dispositivo não mais se aplica, portanto, deixaremos de observá-lo. O oposto pode ocorrer na prática jurídica britânica.

E já vivemos esse conflito cultural desde 2008. A Lei das Sociedades por Ações conta com alguns poucos artigos para disciplinar as práticas contábeis brasileiras, enquanto as normas infralegais contam mais de três mil páginas. Dessa forma, é inevitável que parcela significativa das práticas contábeis não esteja disciplinada na lei.

Com o atual Projeto de Código Comercial que tramita no Congresso Nacional esse choque cultural pode se agravar. De acordo com a proposta em análise, todas, isso mesmo, todas as normas contábeis sairão do texto legal, passando a ser disciplinadas única e exclusivamente por textos infralegais.

Ao mesmo tempo, seguindo nossa tradição jurídica de "civil law", os principais direitos societários e contratuais continuarão a ser previstos diretamente na lei formal stricto sensu. Considerando que vários desses direitos tomam por base os registros contábeis (distribuição de lucro, aquisição de controle de empresa, cláusulas de garantia etc.), impõe-se a questão: como compatibilizar os direitos legalmente assegurados e as normas contábeis totalmente delegadas para o nível infralegal?

Alguns choques culturais da adoção dos IFRS chegam a ser caricatos, como o caso do leasing, talvez o exemplo mais marcante: como pode o arrendatário registrar o bem objeto do contrato de leasing como seu ativo se, juridicamente, a propriedade desse mesmo bem é mantida para o arrendador? E se assim é, o referido bem pode ser apresentado como garantia de outra relação comercial do arrendatário?

A questão do leasing, em particular, já foi razoavelmente absorvida, mas outras virão e demandarão uma posição frente à relação entre a lei e a norma contábil infralegal.

Nos contos de fadas, o conflito cultural, geralmente, termina com um “felizes para sempre”, especialmente se a Disney contar a história, como acontece na “Pequena Sereia”, que casa com seu príncipe encantado. Porém, no texto original de Andersen, a sereiazinha, depois de ser abandonada pelo príncipe, vai para o Reino do Ar, uma possível referência à morte.

 

Edison Fernandes
Professor da Direito GV, o advogado é titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas e membro do Grupo de Estudo sobre Notas Explicativas do CODIM/CPC.

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